A possibilidade de fatores relacionados ao trabalho serem os causadores de adoecimento já foi estabelecida há longa data. Sem dúvida, Bernardino Ramazzini (1633-1714), considerado o "Pai da Medicina do Trabalho", foi a personalidade que trouxe maior contribuição neste campo da Saúde Pública. René Mendes, em um estudo da obra de Ramazzini, chama a atenção para a atualidade das ideias do autor, ao indicar, entre outras, a sua preocupação com o habitual esquecimento da Medicina com os efeitos adversos do trabalho na saúde, além de evidenciar a sua visão acerca da determinação social da doença. Destaca também, a preocupação de Ramazzini na metodologia de abordagem das questões acerca da saúde e do trabalho, nas entrevistas e na anamnese ocupacional. Nas suas palavras:
"Um médico que atende um doente deve informar-se de muita coisa a seu respeito pelo próprio e por seus acompanhantes (...). A estas interrogações devia acrescentar-se outra: ‘e que arte exerce?’. Tal pergunta considero oportuno e mesmo necessário lembrar ao médico que trata um homem do povo, que dela se vale chegar às causas ocasionais do mal, a qual quase nunca é posta em prática, ainda que o médico a conheça. Entretanto, se a houvesse observado, poderia obter uma cura mais feliz".
Nos currículos de graduação de universidades brasileiras são poucas as atividades voltadas para a formação de indivíduos que “pensem” o trabalho como possível causador de adoecimento. Com isto, a abordagem das características do trabalho dos pacientes, com a finalidade de estabelecer possíveis associações com o adoecimento, é restrita, na maioria das vezes, a profissionais de saúde que procuraram adquirir maior conhecimento em cursos de pós graduação. Em grande parte, estes profissionais, por exigência de leis, trabalham para empresas e cumprem as funções que a legislação determina.
Por outro lado, os indivíduos estão sujeitos a adoecerem de diferentes formas, por diferentes etiologias, com manifestações variadas. Muitas vezes, principalmente, em caso de transtornos crônicos, o diagnóstico não é evidente, necessitando maior número de consultas para a sua definição. Quando adoece, o trabalhador pode procurar o médico da empresa, quando é possível, mas em geral, busca atendimento em unidades de saúde pública ou privada, sejam hospitais, consultórios ou outras formas de atendimento. Em uma situação onde o trabalho está relacionado com o adoecimento mas esta relação não é evidente e não tendo tido o profissional que o atendeu uma formação voltada para um possível comprometimento do trabalho com a saúde ou então não tendo sido possível uma investigação criteriosa, a identificação do trabalho como fator de adoecimento está comprometida.
São inúmeras as possibilidades de exposições a situações e agentes nocivos ao longo da vida e também nos ambientes de trabalho. Toxicologia é a ciência que estuda os efeitos nocivos das substâncias químicas nos organismos vivos. Compreende múltiplos conhecimentos e abrange vários setores das atividades humanas como, por exemplo, a alimentação, as indústrias, a agricultura, o meio ambiente e os ambientes de trabalho. Uma substância é tóxica quando ela é capaz de perturbar as funções normais de um organismo vivo. A Toxicologia Ocupacional compreende a aplicação dos princípio da Toxicologia quando a exposição aos agentes ocorre nos ambientes de trabalho. Anteriormente, foi dito que os profissionais de saúde, no Brasil, raramente, associam o trabalho como possível fator de adoecimento, a menos que esta relação seja muito evidente. De forma específica, quando as exposições potencialmente danosas são a substâncias químicas nos ambientes de trabalho, é infrequente que esta relação seja “pensada” pelo profissional de saúde generalista frente a um paciente. Além da formação acadêmica deficiente dos profissionais de saúde acerca dos possíveis efeitos do trabalho na saúde, muitas vezes o quadro clínico é insidioso, complexo, de caráter crônico e multifacetado, de pouca magnitude e pode surgir depois de longo período de cessada a exposição. Na maioria das vezes não há uma especificidade dos sintomas e a clínica pode ser confundida com outras patologias. Também tem que ser levado em conta o fato de que os indivíduos tem outras formas de exposição a agentes químicos, seja no meio ambiente, por exemplo, pela poluição atmosférica, no ambiente doméstico, como a produtos fitossanitários, cosméticos, medicamentos etc e aquelas oriundas de hábitos de vida como tabagismo e etilismo. Além disto, é importante considerar a idade do paciente e a presença de outras patologias que podem confundir o diagnóstico.
Todas esta situações exemplificam o quanto complexa pode ser a determinação de um quadro clínico de intoxicação. Cabe ao profissional de saúde estar apto a incluir a investigação de exposição a substâncias químicas como uma das hipótese diagnósticas, diante de um quadro clínico suspeito. E além disto, realizar com atenção e detalhamento a História Ocupacional de todos os pacientes. A partir desta mudança de conduta dos profissionais de saúde, possivelmente, haveria uma redução de uma parcela de paciente que percorrem diversas especialidades clínicas, elevando os indicadores de morbidade e mortalidade, sem que o diagnóstico etiológico seja estabelecido. Como sugestão inicial, duas perguntas deveriam ser incluídas em todas as consultas médicas: Como é o seu trabalho? A quais agentes químicos você é exposto no seu trabalho? Assim, seriam retomados os sábios ensinamentos de Ramazzini que, em outros tempos, já enfatizava a importância deste conhecimento.
Marisa Moura
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social / Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH/ENSP/FIOCRUZ)
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