Em que posso (pode) ser útil?
Sexta-feira, dia da nossa equipe de saúde da família estar na escala de atendimento dos usuários com suspeita ou confirmados para COVID. Eu, no acolhimento e avaliação inicial, fazia à recepção da porta de entrada, na lateral da unidade, aberta estrategicamente para receber as pessoas que demandam esse atendimento. Já no final da manhã, o quinto paciente aparece acompanhado do diretor administrativo da unidade. O funcionário se antecipa adentrando o espaço que estou e me chama, com uma postura amigável, entrando em um consultório. Ao mesmo tempo, seu acompanhante faz movimento de o acompanhar, e o interrompo com um sinal de pausa com a mão direita, de modo que ele para automaticamente estático, em resposta ao meu sinal. O pergunto se está com “suspeita de COVID”. Me responde que sim, mas sinto certa contrariedade da parte dele ao me responder, prossigo pedindo que aguarde por um momento o meu retorno, aponto o banco ao ar livre. Volto-me ao encontro do diretor, o acompanho entendendo que deseja me confidenciar algo, com a porta do consultório aberta, pergunta se desejo realizar o teste para COVID “IGG e IGM”, pois ele havia conseguido apenas dois e estava oferecendo a mim e a médica da equipe, que estava no atendimento do dia comigo. Respondi que sim, agradecendo-o. Logo, volto ao rapaz que me aguarda de pé. Faço algumas perguntas protocolares do atendimento do município, preencho as informações manualmente. Uma das perguntas é sobre a ocupação, que me responde ser assessor parlamentar (é a terceira pessoa atendida do dia que faz menção a envolvimento político local). Me relata que apresentou sintomas há dois meses como febre, dor de garganta, perda de olfato, realizou o teste ontem e o IGG e IGM estavam positivos. Agora diz não sentir nada. Pergunto-o onde realizou o teste e me responde que foi feito pelo diretor. Diante dessas respostas, já me sinto alerta, com uma maneira cautelosa. Como a me autoanalisar, sei que diante dessas situações que lidamos há muito tempo, possuo uma postura diferente de lidar. Me exponho ao dizer que a entonação da voz fica mais firme, mais formal, gentil, porém distante e reservada. Me levanto, indo até o consultório logo em frente, em que está minha amiga, a médica que o atenderá em seguida. A entrego o prontuário, aponto para ocupação e ela meneia a cabeça positivamente e me pede para chamá-lo. Ele é um homem grande, robusto, pele parda, está de máscara preta que a todo momento ajeita e leva a mão ao rosto. Entra no consultório. Eu estou sentada à mesa de acolhimento do lado de fora. Não passa dez minutos, o escuto falar alto, entendo que fala ao telefone dentro do consultório. Fala tão alto que é possível entender perfeitamente o que diz. Fala com uma mulher, já alterando a voz, um tom nervoso, dizendo que ela deve dizer que está a mando do vereador “José Maria” e que não existe “não atender”. Penso que essa ligação, essa voz alta, toda essa fala, tem a intenção de nos intimidar. Ele sai da sala, ouço agradecer a médica, passa por mim e agradece e se dirige ao longo corredor, onde não é permitido o acesso de pacientes sintomáticos devido a contaminação. O interrompo, chamando-o de “Senhor”, indicando que deve sair pela porta que entrou. Ele me dá as costas dizendo que tem que falar com o diretor. Desisto de interceptá-lo novamente. E no seu dorso observo sua camisa amarela com letras em destaque azuis, a impressão “Vereador José Maria”. O acompanho com o olhar até sua silhueta desaparecer. Não sei quantas vezes já lidei com situações parecidas, bem peculiares no território que trabalhamos. No final de semana anterior, havia recebido ligação da coordenadora da ESF me perguntando se desejaria atuar na testagem na praça, que aconteceria no domingo. Não aceitei a proposta, justificando com um compromisso para o dia. Contudo, já havia recebido o anúncio pelo telefone dessa testagem assinada pela prefeitura e com o nome do referido vereador. Reconheço o meu poder em ainda negar esses convites, pois sou profissional de nível superior e servidora pública. Não usufrui da mesma vantagem funcionários contratados, de nível médio e fundamental. Compartilho a indignação de atuar em mais um cenário de discrepâncias, insuficiências, precariedades, adoecimento e mortes, em que teste de COVID é utilitário artifício para campanha eleitoral.
*O nome citado na narrativa é fictício.
Copyright © 2017 - 2021 - CESTEH