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(21) 2598-2681 / 2598-2682

Autores: Arioneide Alves; Eric Jonathan; Felipe Raposo; Lucas Suisso; Nathan Larcher; Thaiana Santos; Thaís Lisboa.

Docentes: Adriana Kelly e Gideon Borges.

 

A partir de reflexão coletiva, a turma de Residência Multiprofissional em Saúde do Trabalhador (2022) elaborou três questões de aprendizagem sobre a questão racial no Brasil e a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras.

1) “Que aspectos sócio-históricos, políticos, culturais e subjetivos envolvem a questão racial no Brasil?”

A questão racial no Brasil pode começar a ser compreendida a partir da chegada dos portugueses, com a dizimação de populações originárias que habitavam esse território, a escravização de africanos e comercialização desses para as terras brasileiras. Sendo assim, as relações sociais no Brasil foram forjadas sobre a exploração de raças/etnias, subjugadas aos europeus, para sustentar determinado modelo econômico, social, político e cultural pautado na desigualdade, violência e desumanização de grande parte da população que habitava este território.

De acordo com Mattos (2009) os africanos escravizados foram obrigados a trabalhar no campo e eram a principal força de trabalho na colônia, sendo vistos pela elite hegemônica da época como mercadoria, o que perdurou por séculos no Brasil. Ou seja, temos a organização escravocrata do trabalho como pilar da nossa sociedade.

Segundo Lima (2022), a escravidão estendeu-se por cerca de quatro séculos e era, para além de um modo de produção, um tipo de sociabilidade que prescreveu práticas sociais racistas que colocaram negros e indígenas na condição de não-humanos e não-cidadãos. Os traços culturais e traços físicos de populações e etnias diferentes das europeias foram considerados inferiores, indesejáveis e até criminosos, forjando o Brasil racista que temos hoje.

Após um conjunto de leis que  foram conquistadas através de um árduo caminho de resistência e luta abolicionista, a proibição da escravidão no Brasil não acompanhou formas legais de acolhimento e integração da população negra e indígena aos direitos sociais, civis e políticos destinados à população branca, nem mesmo a condições dignas de trabalho e moradia. O Estado brasileiro desejava apagar a herança e os traços físicos e culturais não-brancos da população e ocorreram inúmeras campanhas de incentivo à vinda de imigrantes europeus com o objetivo de “embranquecer” o país. Assim são criadas as bases para o “mito da democracia racial” que perpetua até hoje no Brasil e que sustenta o discurso de que não há racismo aqui, deslegitimando lutas históricas dos movimentos negros e indígenas que visam à reparação  das condições de exploração e violência que tais populações viveram e até hoje vivem. Tal mito também mascara a desigualdade ao negar as diferentes condições de parcelas da população e se utiliza do discurso meritocrático burguês de que todos somos iguais e partimos do mesmo ponto para buscar melhores condições de vida.

O trabalho na sociedade brasileira após a abolição continuou e continua a se estruturar de forma desigual para populações negras e indígenas e para a população branca. Para negros e indígenas eram e são, em sua maioria, destinados trabalhos braçais, subalternizados e com baixa remuneração, quando não lhe eram ou são destinadas as cadeias, os manicômios e as covas. Para os brancos, trabalhos considerados intelectuais, mais dignos e bem remunerados.

De acordo com o Atlas da Violência publicado em 2021 referente à dados de 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.

Segundo o mesmo Atlas da Violência, as mulheres negras representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras. Algumas pesquisas e artigos científicos sinalizam também que mulheres negras sofrem mais violências obstétricas.

É notória a existência de desigualdades a serem enfrentadas pelos negros e indígenas que possuem, na média geral da nossa sociedade, menos escolaridade, salários mais baixos, pior qualidade de atendimento em saúde, empregos e moradias mais precárias se comparadas as condições de vida de homens e mulheres brancos e brancas.

2) “Por que pensar a questão racial no âmbito da formação em Saúde do Trabalhador?”.

De acordo com o IBGE (2019) a população negra constitui a maior parte da população brasileira. Em 2018 havia cerca de 57,7 milhões de trabalhadores e trabalhadoras negros/negras, o que representava cerca de 25% a mais, se comparados a trabalhadores e trabalhadoras brancos e brancas. Esses números refletem também no contingente de força de trabalho subutilizada (66,1%), trabalhadores informais (47,3%), cargos gerenciais (somente 29,9%) e rendimento médio mensal, que chega a ser 73,9% menor se compararmos o grupo populacional negro em relação ao branco. Dados do IBGE (2020) também mostram que um pouco mais de 1% se autodeclara indígena. Ou seja, a maior parte da classe trabalhadora é atravessada por questões étnicas-raciais e as políticas públicas visando a saúde integral devem ser pensadas considerando os múltiplos fatores de desigualdade na relação saúde-doença-trabalho-ambiente.

Segundo o estudo realizado por Nery (2019), com dados de 2000 a 2019, trabalhadores e trabalhadoras perderam cerca de 65 mil anos de vida em decorrência dos acidentes de trabalho. Nesse mesmo estudo, concluiu-se que trabalhadores e trabalhadoras pretos/pretas morreram mais precocemente, se comparado a trabalhadores e trabalhadoras brancos/brancas.

Pensar em uma formação que seja atenta às questões étnicas-raciais e seja antirracista, é contribuir com a consolidação do Sistema Único de Saúde e para a melhoria da qualidade de vida e das condições de saúde da população brasileira. A PNSTT deve se articular com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) para desvelar o lugar do trabalho na formação social brasileira e as desigualdades em saúde que acometem a maior parte da população. Fundamental também reconhecer, ainda durante a formação, as “condições de vida que resultam desses processos sociais, culturais e econômicos presentes na história do País” (BRASIL, PNSIPN, 2013) e os privilégios de pessoas brancas perante pessoas negras e indígenas, nos espaços educacionais, de habitação, nos campos de trabalho e até mesmo dentro dos processos de trabalho.

É necessário pensar a questão racial no âmbito da formação em saúde do trabalhador e da trabalhadora pelo fato das relações entre os seres humanos, inclusive as de ordem intersubjetiva, serem perpassadas por relações de poder e manutenção de interesses. Por tanto, devemos ficar atentos e atentas à existência de um discurso de seletividade racial, que é pautado por preconceitos, discriminações e racismo. Além disso, também devemos nos atentar que a exclusão sistemática por séculos de parcela da população resulta no não acesso desta aos serviços de saúde, gerando uma maior desproteção social.

3) “Como promover equidade racial na formação em Saúde do Trabalhador?”.

Temos como princípios no campo da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, o protagonismo desses, o respeito às suas experiências e a construção coletiva de saúde. Considerando esses princípios, precisamos pensar a discussão sobre racismo e equidade racial junto as trabalhadores e trabalhadoras, em especial, negros, negras e indígenas. Outra estratégia possível é o incentivo à formação de equipes técnicas com membros pretos, pretas e indígenas, visando um ambiente racialmente e etnicamente variado, podendo gerar mais reconhecimento entre os que são atendidos e os que estão buscando atendimento.

A ideia de discutir os temas racismo e negritude através de debates, rodas de conversa e estudos, bem como a necessidade de se criar estratégias para combater o racismo estrutural nas instituições, como aproximação e articulação com o controle social e o conhecimento das políticas e leis já existentes voltadas para a população negra e indígena, buscando potencializar os atributos positivos e de afirmação dessas identidades e coletividades.

A promoção e/ou ampliação de políticas de ações afirmativas para pessoas negras e indígenas que desejem acessar a formação no campo da saúde do trabalhador é uma estratégia para promoção da equidade. E que a relação Capital x Trabalho deva ser incentivada a ser discutida e pensada nas diferentes formações dentro da área da saúde, visando desvelar a formação sócio-histórica, econômica e cultural brasileira por uma perspectiva racializada.

Acreditamos que existam algumas possibilidades de promoção de equidade, e de ações que possam fomentar a discussão e uma mudança cultural, dentre elas a ampliação do debate sobre interseccionalidade dentro da saúde, durante a formação de novos trabalhadores e trabalhadoras para a rede de atenção à saúde, como na formação para a carreira acadêmica e na educação permanente dos trabalhadores e trabalhadoras já inseridos na instituição, independente de vínculos trabalhistas.

Caminhando para o encerramento dessa breve reflexão e pensando em outra possibilidade de ir na direção da equidade dentro da formação, destacamos a necessidade de fomento de cursos preparatórios para as pós-graduações das instituições para pessoas negras, indígenas e pessoas atravessadas por outros marcadores de desigualdade.

Por fim, é importante ressaltar que o racismo existe e deve ser enfrentado e eliminado, bem como é de fundamental importância construir estratégias, ações e conhecimentos acerca do impacto do racismo na construção da identidade das pessoas negras e indígenas no Brasil. Esse enfrentamento é primordial para se construir uma sociedade equânime e que tenha como princípio norteador o respeito à dignidade humana e o exercício pleno da cidadania e emancipação humana.

 

REFERÊNCIAS

AMARAL, SP. Módulo 2 – História do Negro no Brasil Centro de Estudos Afro-Orientais. Curso de Formação para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras. Universidade Federal da Bahia. Bahia, 2010. Disponível em: <https://ceao.ufba.br/sites/ceao.ufba.br/files/livro2_historiadonegro-sim....

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS 3. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017.

BRASIL, Ministério da Saúde. PORTARIA N° 1.823, DE 23 DE AGOSTO DE 2012, Brasília/DF. Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html.> Acessado em 20 de julho de 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica, n.41, 2019c. Disponível em <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo...

IPEA, Atlas da Violência 2021. Daniel Cerqueira et al. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: <https://www. ipea. gov. br/atlas violência/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021 completo. pdf>

KALCKMANN, S;  SANTOS, CG.; BATISTA, LE.; CRUZ, VM. Racismo Institucional: um desafio para a eqüidade no SUS? Revista Saúde e Sociedade. São Paulo, v.16, n.2, p.146-155, 2007

LIMA, NDF. Preto é o lugar onde eu moro: o racismo patriarcal brasileiro. Rev. katálysis. Santa Catarina, 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rk/a/5XsysYwfhv4DTx7NqjpKNPh/?lang=pt>

MATTOS, RA. História e cultura afro-brasileira. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2009.

NERY, FSD et al. Tendência temporal dos anos potenciais de vida perdidos por acidentes de trabalho fatais segundo raça/cor da pele na Bahia, 2000-2019. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional [online]. 2022, v. 47, e1. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2317-6369/18719pt2022v47e1>. Epub 22 Jul 2022. ISSN 2317-6369.

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