Por Francisco Pedra
Médico sanitarista, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh)
O último dia 27, marcou o Dia Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho. No entanto, os “acidentes” de trabalho (AT) ainda são uma imensa chaga em nosso país e não são prevenidos! Destroem vidas, famílias, consomem recursos do Estado, prejudicam a produção, sobrecarregam os serviços de saúde e os fundos previdenciários. Seguramente se colocam como um dos dez mais importantes problemas de saúde pública em nosso país. Amputam, matam, causam sequelas, estigmatizam, provocam desemprego do trabalhador, humilhações, desesperança, suicídios, desestruturam famílias.
Essa imensa perda ocorre fundamentalmente por condições de produção inadequadas, organizadas exclusivamente pelos empresários. Estes recebem os ganhos que a atividade econômica gera, mas os danos desses prejuízos não são eles que pagam. Em dez anos, de 2004 a 2013, a Previdência Social analisou os AT apenas no setor privado.
Entre todos os casos atendidos por acidentes e violências nos Serviços de Saúde no Brasil, 33% têm origem em AT em todos os segmentos do corpo. Apesar de uma grande perda nos dados, é registrado um total de 431.782 acidentes de trabalho em mãos e punho, inclusive fraturas; uma média de 43.105 ao ano. Acidentes dessa natureza, por exemplo, são perfeitamente EVITÁVEIS com tecnologia conhecida e de baixo custo.
Acidentes de trabalho não são “acidentes”, não são frutos do acaso nem desígnios de Deus e muito menos ocorrem por culpa dos trabalhadores. Não são razões de ordem técnica, pois já existem meios de organizar a produção de modo seguro. Os AT são fatos previsíveis. Ao contrário do que se diz, o uso de equipamentos individuais de proteção não tem eficácia para reduzir os danos. As campanhas para “sensibilizar” os trabalhadores servem apenas para atribuir a eles a culpa pelos acidentes.
Os trabalhadores, maiores interessados, são excluídos das decisões sobre os principais vetores que levam a essas perdas: a organização da produção, as políticas econômicas que provocam uma exploração do seu trabalho cada vez mais intensa – o que deverá ainda piorar com o fim da CLT através da Reforma Trabalhista, e também da discussão sobre as políticas públicas para Saúde do Trabalhador
Há 42 anos, uma portaria do Ministério do Trabalho criou o Dia Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho, em 27 de julho. Hoje em dia se fala em “comemorar”, “celebrar”. Nada mais inadequado do que isso. Como estudiosos dos efeitos da produção e do processo de trabalho na saúde humana, temos comprovado que os problemas não foram resolvidos nem sequer estão melhorando.
Como podemos constatar na pesquisa mais importante em nossa história sobre Acidentes de Trabalho no país, realizada por cientistas e técnicos do mais alto gabarito do país do Ministério da Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas e da Fundação Oswaldo Cruz, realizada em 2013, ocorreram naquele ano cinco milhões de acidentes de trabalho. Uma estatística impressionante. Desse total, mais de 1,4 milhão são acidentes de trajeto.
Esse número não nos surpreende, embora nos assuste, pois é coerente com a história do problema e com as políticas públicas no setor. E coerente com a profunda e cruel exploração dos trabalhadores no Brasil. Em 1972, o total de acidentes de trabalho somou 1,7 milhão e, por essa razão, o Banco Mundial ameaçou sustar linhas de créditos ao país. Um escândalo internacional! As respostas do governo da ditadura foram medidas para mudar para não mudar nada:
Mascarando as estatísticas. Criando dois períodos de contagem de tempo após o acidente. Até os 15 dias após os acidentes, as empresas passaram a pagar o salário do acidentado. Após os 15 dias, o salário passa a ser encargo da Previdência, e, assim, o número de acidentes até o 15o dia não é computado. Justamente aqueles mais numerosos.
Criando o Dia Nacional de Prevenção de Acidentes, se fortaleceram os Serviços de Medicina no Trabalho nas empresas (SESMT), que têm efeito mínimo na prevenção. Na prática, os SESMT, dependentes e submetidos ao controle do empresário, agem no sentido de ocultar os casos de AT, evitando configurar o nexo causal, emitir a Comunicação de Acidentes de Trabalho (CAT), ou mesmo descaracterizando o local e contexto do AT. Depois foi criado o instrumento “obrigatório” da CAT, que é, até o momento, o documento oficial de registro dos acidentes. Mas, na prática, registra uma fração muito pequena.
Uma política perversa é a ação da Perícia da Previdência Social, fortemente pressionada para negar o nexo causal, para acelerar o exame pericial e retirar a autonomia técnica do perito, fixando prazos de afastamento a priori, sem ajuste caso a caso, pois são prefixados em programas de computador. A boa pratica médica impõe que o médico tome as providencias para cada paciente individualmente, mas este princípio é violado.
No último dia 27 de julho, no entanto, foi anunciado pelo governo uma grande investida na redução de benefícios (BRASIL.GOV2). Ou seja, exercendo em níveis extremos uma política de cortes de benefícios, deixando evidente a intenção de reduzir as estatísticas e os gastos provocados pelos acidentes.
A mesma página do governo divulga que os benefícios acidentários pagam em média apenas R$850,00 para cada trabalhador! Desconhece-se alguma intervenção de mesmo alcance que é realizada no sentido de cobrar o enorme montante das dívidas das empresas com a Previdência Social. Entre as empresas e os trabalhadores, os governos têm um lado. Assim por diante, quase todas as providencias oficiais ou oficiosas dos governos e das empresas, desde então, agem no sentido de falsear esses números.
No mesmo dia 27 de julho, o site do governo federal anunciou uma redução do número de AT (BRASIL.GOV1). O que é totalmente questionável: entre numerosas evidências, é flagrante o dado que informa o pagamento de apenas 3.916 aposentadorias por invalidez, apesar do poder destrutivo dos AT no país. Casos que o governo considera graciosos e quer cortar! (AEPS.2015). Até mesmo pela própria Previdência Social que, em documento divulgado em 2014, registra que, entre 2004 e 2013, os benefícios acidentários apenas no setor privado aumentaram 84%. O Ministério da Saúde informou em sua página que:
Entre 2010 e 2015, o Ministério da Saúde registrou 439,4 mil acidentes de trabalho grave, 276,6 mil acidentes de trabalho por exposição a material biológico e 30,5 mil intoxicações exógenas (exposição a substâncias químicas) relacionadas ao trabalho. (MS, 2017).
Diante disso, o discurso onipresente da “falta de cultura prevencionista” toma conta dos agentes oficiais, e até de várias organizações de caráter técnico. De fato, existe sim uma cultura sobre os acidentes de trabalho: o que se pratica nos órgãos do governo, nas empresas e na imprensa, disseminada e sistematicamente no país, é uma cultura de ocultar os acidentes e as doenças do trabalho.
Não apenas as condições internas ao ambiente da organização influenciam nos efeitos à saúde dos AT. O crescimento dessas ocorrências tem causa nas forças gerais da sociedade, em particular na precarização do trabalho, com contratos precários ou inexistentes, jornadas mais extensas e intensas, falta de fiscalização do Ministério do Trabalho (estão em atividade em nosso imenso país apenas 2.450 auditores fiscais do Ministério do Trabalho) e outros órgãos, e especialmente da política econômica. Esta política vem aprofundando em escala histórica o desemprego, a precarização e a insegurança. Em seis anos, foram diminuídos 14 milhões postos de trabalho. Foi calculado que um terço dos suicídios no Brasil tem origem no desemprego. A violência do trânsito, decorrência da falta de investimento em transportes coletivos e prioridade para o transporte individual é o maior responsável pelos acidentes de trânsito terrestre, uma prioridade mundial e brasileira em saúde pública. Grande parte desses acidentes ocorre com motoristas de motocicletas e de caminhões.
Para nós que temos a incumbência de estudar o problema os profundos cortes para a pesquisa, em patamares inéditos, são um impedimento grave. Limita em muito o cumprimento de nossa tarefa que é a de repassar para a sociedade as informações e análises sobre as prioridades para que essa decida sobre sua saúde. Existem barreiras rígidas para bloquear o acesso dos estudiosos dos AT, como a caixa preta dos dados da previdência que não se pode acessar. Entre outros, denunciamos o grave fato de que há um bloqueio pétreo dos dados sobre quais são as empresas onde ocorrem o maior número de acidentes, sob a alegação de que a revelação do CNPJ pode violar o sigilo fiscal legal. O que tem a ver sigilo fiscal com o problema dos AT é uma pergunta nunca respondida. As ações de prevenção sobre essas empresas são uma prioridade primeira!
Referências:
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