Antes de traçar uma linha de argumentação, é importante frisar que a comunicação, entendida como espaço dialógico de produção de sentidos, é um elemento essencial da vida em sociedade e, portanto, imprescindível à teoria e à prática circunscritas ao campo de relações entre a saúde, o trabalho e o ambiente. E, por isto, se faz necessário iniciar este compilado de ideias tomando como pressuposto que as práticas comunicativas ora vigentes no mundo da saúde e do trabalho muito pouco (ou em nada) se habilitam como espaços dialógicos plenos e/ou produtores de sentido. Quais seriam, então, os determinantes desta firme acepção?
O primeiro deles estaria relacionado com o lugar de produção da maioria do conhecimento associado aos campos da saúde do trabalhador e da saúde ambiental no país: a academia. Se, por um lado, é fundamental reconhecer o papel da academia na aproximação com os movimentos sociais e sindicais, sobretudo na década de 1980, quando se começou a sedimentar as bases conceituais e normativo-legais que sustentam estes campos no Brasil até os dias de hoje, por outro lado é necessário apontar que, de maneiras distintas e em diferentes graus, esta mesma academia foi se apropriando, ao longo dos anos, da pauta destes setores organizados da sociedade civil e lhes dando um tom mais explicativo (retórico-diagnóstico) e menos resolutivo. Consequentemente, grande parte do processo comunicativo em torno de questões geradas no âmbito das relações entre saúde, trabalho e ambiente se desloca para os fóruns acadêmicos (em particular aqueles da grande área da Saúde Coletiva), ganha robustez teórica, conceitual e metodológica mas, como consequência indesejada ou efeito colateral, acaba se distanciando da realidade e dos padrões de literacia de diversos grupos que, em última análise, deveriam ser os principais beneficiários – ou mesmo protagonistas – do conhecimento produzido.
Em outra perspectiva, a própria academia, ao reconhecer a assimetria entre a produção de saberes sobre a saúde, o trabalho e o ambiente e a capacidade de significação deste conhecimento, por parte de atores-chave deste campo de relações (trabalhadores, populações do campo e da floresta, indivíduos atingidos por grandes empreendimentos, entre outros), busca se aproximar destes indivíduos através de um cuidado maior na produção de conteúdos, na escolha das formas e na definição de estratégias de divulgação de informações. Mas, apesar deste reconhecimento e preocupação, sobretudo no que diz respeito à linguagem, efetivamente, não consegue romper com a heteronomia determinada pelo distanciamento entre a produção e a significação do conhecimento produzido, falhando no estabelecimento de redes dialógicas horizontais, capazes de permitir aos interlocutores o desenvolvimento de habilidades e competências que os levem a um melhor cuidado de sua saúde e de sua família, à tomada de decisões informadas sobre diferentes aspectos da saúde e qualidade de vida e ao reconhecimento de seu papel cidadão nos diferentes territórios, ambiental e culturalmente determinados.
É importante observar que a não-ruptura com a condição de heteronomia, determinada pelo distanciamento entre a produção e a significação do conhecimento, no campo da Saúde Pública nacional, não é deliberada ou proposital (pelo menos, creio...), mas reflexo da primazia do modelo transmissionista na educação e na comunicação em saúde (Paulo Freire denominava este modelo de bancário, por centrar-se em estratégias de ‘depósito’ de informações naqueles indivíduos reconhecidos, pelos detentores da informação, como desprovidos de saber ou conhecimento). Exemplos históricos atestam a baixa capacidade de influência das estratégias contemporâneas de comunicação em saúde, pautadas fortemente pela perspectiva transmissionista, no enfrentamento das condições ou situações-problema para as quais se destinam. As três décadas de campanhas educativas (informativas?) para a prevenção da dengue e outras doenças transmitidas pelo aedes aegypti, por exemplo, não conseguiram desenvolver, junto a uma imensa parcela da sociedade brasileira, a perspectiva cidadã e de co-responsabilidade no enfrentamento destas enfermidades, que ainda se apresentam como alguns dos principais desafios para a Saúde Pública nacional. Os programas de prevenção de acidentes de trabalho ainda são pautados pela mesma perspectiva transmissionista, e com caráter normativo-punitivo, contribuindo em muito pouco (pelo menos no que tange ao papel das estratégias de comunicação) para o enfrentamento deste problema em todo o mundo. Desta forma, idealiza-se a comunicação (e, em um grau mais avançado, a educação) como estratégia(s) prioritária(s) de enfrentamento de situações-problema geradas no âmbito das relações entre saúde, trabalho e ambiente, sem perceber que sua premissa libertadora está seriamente comprometida, em razão da não-ruptura com a perspectiva transmissionista e, por conseguinte, com a manutenção da heteronomia historicamente produzida.
Uma discussão ainda incipiente em nosso país, mas muito avançada e bastante atual em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos e em vários países europeus, diz respeito ao conceito de literacia em saúde e sua importância estruturante no que tange a comunicação e a educação para a saúde. Este conceito identifica e delimita uma ampla gama de habilidades e competências que os indivíduos utilizam para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre saúde, visando aumentar sua capacidade de tomar decisões informadas sobre diferentes aspectos de sua saúde e de terceiros. Como quaisquer habilidades e competências, estas também podem ser desenvolvidas ou aprimoradas e, portanto, devem ser consideradas no escopo de ações de comunicação e educação em saúde (e, por suposto, na relação da saúde com o trabalho e o ambiente).
Uma comunicação adequada à literacia em saúde resulta numa maior capacidade de engajamento dos indivíduos em torno da compreensão e da resposta frente a um problema de saúde relacionado ao trabalho e/ou ao ambiente. Também permite ao indivíduo compreender melhor seu lugar e papel nos espaços onde estes problemas são gerados e junto às estruturas sociais ali presentes, elementos cruciais para a promoção de uma condição autônoma e crítica. Talvez aí esteja um caminho para, de fato, posicionar a comunicação como elemento estratégico para o enfrentamento e a superação de situações-problema geradas no âmbito das relações entre saúde, trabalho e ambiente, contribuindo para a remoção das palavras “idealizada” e “pretenso” do título do presente texto.
Mas este já é assunto para outro texto...
Uma observação final: o estilo pouco direto, às vezes prolixo, adotado na redação do presente texto foi proposital, uma tentativa de exemplificar, na prática, alguns dos pontos de vista trabalhados neste breve texto.
Rio de Janeiro, 28 de março de 2019.
Frederico Peres
CESTEH / ENSP / FIOCRUZ
Copyright © 2017 - 2021 - CESTEH